Bento de Jesus Caraça<br>e a integração de intelectuais<br>no PCP

Manuel Gusmão

A in­te­gração de in­te­lec­tuais no com­bate do povo é tão re­mota quanto a exis­tência de classes an­ta­gó­nicas como es­tru­tura fun­da­mental sobre a base da qual se eleva qual­quer cons­trução so­cial. En­tre­tanto, esta frase não deve levar-nos a acre­ditar que a pro­le­ta­ri­zação dos in­te­lec­tuais pode levá-los à pro­le­ta­ri­zação com­pleta como agu­da­mente o ob­servou Walter Ben­jamin.

Na sua vida, Ca­raça foi sempre fiel à sua origem, es­teve sempre ao ser­viço do povo e nunca dos opres­sores e ex­plo­ra­dores das massas tra­ba­lha­doras

Desde o início da his­tória co­nhe­cemos formas di­fe­ren­ci­adas de in­te­gração dos in­te­lec­tuais nas lutas po­pu­lares mais ou menos tor­nada cons­ci­ente. Para haver in­te­gração tem que haver acção e re­acção. O in­te­lec­tual que se in­tegra no mo­vi­mento ope­rário não per­ma­nece o mesmo; sofre um pro­cesso de trans­for­ma­ções tal como o co­lec­tivo em que se in­tegra.

A in­te­gração é assim ten­den­ci­al­mente um pro­cesso de dupla trans­for­mação.

Para o in­te­lec­tual que se in­tegra, o pro­cesso de trans­for­mação a que li­vre­mente se su­jeita é uma apren­di­zagem so­cial, po­lí­tica e ide­o­ló­gica. O ca­rácter co­lec­tivo do tra­balho e a força da de­cisão co­lec­tiva não são apenas re­gras me­to­do­ló­gicas que devem as­se­gurar o co­nhe­ci­mento ri­go­roso de uma si­tu­ação ou o acerto de uma ori­en­tação para a sua re­so­lução. São também re­gras de mé­todo para as­se­gurar a po­sição de classe de quem de­cide.
Di­zemos na re­so­lução po­lí­tica da VII As­sem­bleia do Sector In­te­lec­tual de Lisboa: «O papel dos co­mu­nistas não é apenas o de avançar na luta, é o de alargar as fi­leiras dos que nela par­ti­cipam, o de alargar o grande mo­vi­mento de massas sobre o qual ca­minha a al­ter­na­tiva ao “es­tado das coisas ac­tual”».

[…] «Há um sen­tido para a his­tória, que é o da eman­ci­pação hu­mana de todas as formas de ex­plo­ração e opressão, o da li­ber­tação de todo o po­ten­cial cri­ador do tra­balho hu­mano. Esse sen­tido da his­tória é um “pos­sível his­tó­rico”», o que sig­ni­fica que é também uma pos­si­bi­li­dade real.

Com isso que­remos su­bli­nhar que o «es­tado de coisas ac­tual» é para nós o ob­jecto de um co­nhe­ci­mento ri­go­roso e que não nos li­mi­tamos a tra­ba­lhar sobre fan­ta­sias ou puros de­sejos.

O ca­minho da al­ter­na­tiva é cons­truído passo a passo. Avança por vezes de forma ful­gu­rante, sofre em ou­tros casos dra­má­ticos re­tro­cessos.

«Tem bases ob­jec­tivas, mas as­senta também em so­nhos mi­le­nares, em cuja for­mu­lação, a arte, a ci­ência, a cul­tura e a téc­nica de­sem­pe­nham um papel cen­tral. O lugar dos in­te­lec­tuais é na cons­trução desse pos­sível. En­quanto in­te­lec­tuais e en­quanto tra­ba­lha­dores, somos parte in­te­grante da força de massas que his­to­ri­ca­mente trans­forma e trans­for­mará o mundo».

En­quanto co­mu­nistas, apren­demos que também é nossa a ta­refa que canta num poema de Fran­cisco Mi­guel: Só quando a terra for nossa/ meu amor, te­remos pá­tria. Como co­mu­nistas, temos en­contro mar­cado com uma terra sem amos.

A ex­pe­ri­ência his­tó­rica do PCP en­sina-nos que a in­fluência entre os in­te­lec­tuais não é de forma al­guma al­ter­na­tiva à in­fluência na classe ope­rária.

Essa é uma das ra­zões que nos leva, no pro­grama e nos es­ta­tutos do Par­tido, a de­finir duas ali­anças so­ciais bá­sicas para a época his­tó­rica que atra­ves­samos.

A ali­ança da classe ope­rária com o cam­pe­si­nato, e a ali­ança da classe ope­rária com os in­te­lec­tuais e ou­tras ca­madas in­ter­mé­dias.

Por outro lado, os grandes mo­mentos de in­fluência do PCP entre os in­te­lec­tuais e a classe ope­rária coin­cidem.

É na sequência da re­or­ga­ni­zação do PCP, em 1940/​41, da re­a­li­zação do 3.º e 4.º Con­gresso em 1943 e 1946 e das grandes greves e mar­chas da fome, que a in­fluência do PCP se alarga entre a in­te­lec­tu­a­li­dade e a classe ope­rária.

Deste au­mento da in­fluência de massas, um outro exemplo é o de o pe­ríodo re­vo­lu­ci­o­nário que se segue ao 25 de Abril de 1974.

Bento de Jesus Ca­raça,
um caso exem­plar


Um dos casos exem­plares desta in­te­gração é o de Bento de Jesus Ca­raça.

Bento nasceu no Alen­tejo, filho de tra­ba­lha­dores ru­rais e veio a ser um dos mais emi­nentes in­te­lec­tuais do nosso País.

«Filho do povo tra­ba­lhador foi um dos poucos que, saído do “fundo das massas” como ele usava dizer, se elevou a uma alta si­tu­ação so­cial e pôde usu­fruir, com lar­gueza e pro­fun­di­dade, da ri­queza cul­tural da hu­ma­ni­dade. Porém ele foi dentre desses poucos, um dos que mais exem­plar­mente “se con­ser­varam fiéis à sua pró­pria classe e aos seus ideais de eman­ci­pação hu­mana e não de­ser­taram in­gres­sando no campo con­trário” (Con­fe­rên­cias…p.7). Ca­raça nu­tria um pro­fundo des­prezo, tanto mais pro­fundo quanto era o de um homem pro­fun­da­mente hu­mano e com­pre­en­sivo, por aqueles que saídos do povo se não “con­ser­varam fieis à sua origem” e “se ban­de­aram por acção dos vá­rios meios de que o apa­relho dispõe com os in­te­resses dos que mandam” ( ib.,p.109). Na sua vida, Ca­raça foi sempre fiel à sua origem, es­teve sempre ao ser­viço do povo e nunca dos opres­sores e ex­plo­ra­dores das massas tra­ba­lha­doras.»

Este traço es­sen­cial da in­te­gri­dade e es­ta­tura moral e in­te­lec­tual de Bento de Jesus Ca­raça é, creio, de­ter­mi­nante não só do tipo novo de in­te­lec­tual que ele foi – vendo, com paixão e rigor, a sua missão e re­a­li­zação como in­te­lec­tual em fusão com os in­te­resses e as­pi­ra­ções, acção e missão his­tó­rica das massas tra­ba­lha­doras –, mas igual­mente, e por isso mesmo, de­ter­mi­nante também de vec­tores ca­pi­tais de al­gumas das suas mais re­le­vantes con­cep­ções e ac­ti­vi­dades. (Álvaro Cu­nhal, op.cit 2011)

Com efeito, e como nota apenas, a con­cepção de cul­tura que ela­borou (não só na sua cé­lebre Con­fe­rência «A Cul­tura In­te­gral do In­di­víduo – pro­blema cen­tral do nosso tempo», mas um pouco por toda a parte nas suas obras) e que pra­ticou em ac­ti­vi­dades cen­trais da sua vida (como sejam a Uni­ver­si­dade Po­pular e a Bi­bli­o­teca Cosmos) trazia essa marca de raiz da terra fe­cunda onde bro­tara. (id.,ibid.)

A sua con­cepção de cul­tura é alheia a todo o eli­tismo e é ra­di­cal­mente de­mo­crá­tica.

Bento de Jesus Ca­raça não se li­mita a cul­tivar os fi­lhos das classes tra­ba­lha­doras, ele en­cara como área da sua acção o con­junto da po­pu­lação.

Ele vai ser o di­rector da Bi­bli­o­teca Cosmos, ta­refa que lhe é atri­buída por Bento Gon­çalves, Se­cre­tário-geral do PCP.

Dias Lou­renço conta que foi Ma­nuel Ro­dri­gues de Oli­veira quem lhe contou que em Angra do He­roísmo, tendo-se en­con­trado com Bento Gon­çalves, lhe per­guntou a quem po­deria re­correr para «dar umas massas», em troca de uma ini­ci­a­tiva cul­tural de grande al­cance.

Bento Gon­çalves propôs-lhe então que con­tac­tasse Bento de Jesus Ca­raça, que se en­car­regou de or­ga­nizar a Cosmos como uma edi­tora de uma en­ci­clo­pédia vi­rada para a cul­tura po­pular.

Bento de Jesus Ca­raça ao mesmo que se en­car­re­gava de di­rigir essa edi­tora, per­tencia ao Con­selho Na­ci­onal de Uni­dade Anti-Fas­cista.

A cul­tura in­te­gral do in­di­víduo
Pro­blema cen­tral no nosso tempo

Bento de Jesus Ca­raça, sendo um homem li­gado à cul­tura ci­en­tí­fica, na sua obra con­si­derou a cul­tura na sua real com­ple­xi­dade e na sua uni­dade.

O que tem a ver com a sua li­gação, com o Mar­xismo.

Assim, ele es­cre­verá sobre a his­tória da ci­ência e ci­en­tistas, assim como sobre as artes, es­cri­tores e ar­tistas.

«Mas nem só estas ne­ces­si­dades de ordem ma­te­rial im­pres­si­o­naram sempre o homem; desde que a sua exis­tência se en­con­trou su­fi­ci­en­te­mente as­se­gu­rada, para não lhe ser ne­ces­sário de­dicar-lhe todos os seus mo­mentos de atenção, o homem virou-se para a con­tem­plação da na­tu­reza e dessa con­tem­plação nasceu no seu es­pí­rito o sen­ti­mento do belo, origem de todas as suas ma­ni­fes­ta­ções ar­tís­ticas.

Por outro lado, ele de­pressa co­meçou a viver em so­ci­e­dade com os ou­tros ho­mens e a re­co­nhecer a ne­ces­si­dade de co­o­pe­ração com os seus se­me­lhantes.»

[…] «Foi-se in­tro­du­zindo len­ta­mente nas re­la­ções so­ciais uma outra ideia – a de que cada um não deve uti­lizar as re­la­ções de so­ci­e­dade uni­ca­mente com o ob­jec­tivo de tirar aqui in­te­resse ou pro­veito pró­prio, deve também dar aos ou­tros o seu es­forço para os au­xi­liar.

É o sen­ti­mento do belo in­tro­du­zido nas re­la­ções so­ciais, dando aos ho­mens ob­je­tivos de ordem moral.» […]

E aqui Bento Ca­raça, na pas­sada, re­solve um pro­blema que tem sido muito dis­cu­tido, ele pro­nuncia-se por uma con­cepção di­a­lé­tica do Mar­xismo e afasta uma con­cepção es­tri­ta­mente ins­tru­mental.

«O aper­fei­ço­a­mento cons­tante dos meios de sa­tis­fação e de­sen­vol­vi­mento destas ne­ces­si­dades, ideias e sen­ti­mentos, cons­titui a cul­tura, que no dizer de Karl Marx “com­pre­ende o má­ximo de­sen­vol­vi­mento das ca­pa­ci­dades in­te­lec­tuais, ar­tís­ticas e ma­te­riais en­cer­radas no homem”.

A cul­tura é assim si­mul­ta­ne­a­mente um meio e um fim.»

Numa con­fe­rência pro­nun­ciada em 1933, que cons­titui um texto fa­moso que ainda hoje muito re­fe­rido e es­tu­dado, Ca­raça reúne al­guns dos seus pen­sa­mentos fun­da­men­tais sobre a cul­tura e es­creve a certa al­tura:

«Para po­dermos res­ponder a estas per­guntas, temos que co­meçar a de­finir os termos e pôr de­pois con­ve­ni­en­te­mente o pro­blema. O que é o homem culto? É aquele que:

1.º – Tem cons­ci­ência da sua po­sição no cosmos e em par­ti­cular na so­ci­e­dade em que per­tence;

2.º – Tem cons­ci­ência da sua per­so­na­li­dade e da dig­ni­dade que é ine­rente à ex­pe­ri­ência como ser hu­mano.

3.º – Faz do apro­vei­ta­mento do seu ser in­te­rior a pre­o­cu­pação má­xima e fim úl­timo da vida.

Ser-se culto não im­plica ser-se sábio; há sá­bios que não são ho­mens cultos e ho­mens cultos que não são sá­bios; mas o que ser culto im­plica é um certo grau de saber, aquele pre­ci­sa­mente que for­nece uma base mí­nima para sa­tis­fação das três con­di­ções enun­ci­adas.

A aqui­sição da cul­tura sig­ni­fica uma ele­vação cons­tante, ser­vida por um flo­res­ci­mento do que há de me­lhor no homem e por um de­sen­vol­vi­mento sempre cres­cente de todas as suas qua­li­dades po­ten­ciais, con­si­de­radas do quá­druplo ponto de vista fí­sico, in­te­lec­tual, moral e ar­tís­tico; sig­ni­fica, numa pa­lavra, a con­quista da li­ber­dade

E re­pare-se, isto que é um dos prin­cí­pios ele­men­tares do hu­ma­nismo co­mu­nista é es­crito em 1933, data em que é apro­vada a Cons­ti­tuição da di­ta­dura, que abre ca­minho à fas­ci­zação do re­gime em Por­tugal, data em que Hi­tler vence as elei­ções na Ale­manha, passo ne­ces­sário para o lan­ça­mento da car­ni­fi­cina que foi a 2.ª Guerra Mun­dial.

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Edi­ções re­fe­ridas:

Bento de Jesus Ca­raça, A Cul­tura In­te­gral do In­di­víduo, Con­fe­rên­cias e Ou­tros Es­critos. Gra­diva, 2008.

Álvaro Cu­nhal, Carlos Aboim In­glez, An­tónio Dias Lou­renço, «Bento de Jesus Ca­raça 1901-2011», Ca­derno Ver­melho n.º 19, 2011